Uma das dificuldades que eu tinha quando comecei a escrever era entender o que era o PDV, ou seja , Ponto de Vista de uma narrativa. Li vários artigos na ápoca, até encontrar uma amiga escritora que de maneira didática me ensinou o conceito.
Semana passada, enquanto navegava pela internet em busca de artigos para estudo, me deparei com essa pérola escrita pelo Oswaldo Pullen. De maneira muito clara, ele explica o que, para muitos, é um problema. Compartilho com vocês o conceito de PDV e tenho certeza de que será de grande ajuda.
PDV – O ponto de vista
© Oswaldo Pullen
Vimos que existem três elementos que definem essencialmente a cena que são: tempo, lugar e ponto de vista.
Havendo um corte na continuidade temporal, mesmo mantidos o cenário e os personagens, outra cena terá se iniciado. Na literatura, é usual nesses casos as transições do tipo “Um pouco depois...”, “Tempos mais tarde”, “No dia seguinte”, “Após aquilo”, etc.
Quanto à mudança de cenário, a consequente mudança de cena é bastante clara. Mas, e em cenas de movimento?
Podemos dizer para este segundo caso que a mesma cena só permanece mantido o continuum temporal. Exemplos são cenas ocorridas dentro de automóveis, trens ou metrô, quando mesmo com o cenário mudando constantemente no fundo, o verdadeiro cenário é o próprio veículo. Outra situação é a do personagem, ou dos personagens caminhando ou em fuga, caso em que, mantido o continuum, a cena é a mesma. No entanto, é bom estar atento. Construções do tipo “Quando contornaram a esquina…” podem denotar a interrupção do continuum.
Antes de entrarmos no terceiro ponto, que é o PDV, o Ponto de Vista, temos que trazer uma coisa à baila, que é o foco narrativo, uma das características principais da narrativa. O foco narrativo pode estar na primeira pessoa (um personagem como narrador da estória), na terceira pessoa (que pode ser restrita ou omnisciente), na segunda, quando um personagem passa a fazer a narrativa através da fala de outro. No artigo “Elementos da narrativa”, no site escritacriativa.net eu trato a questão em mais detalhes.
Para nossos fins, exceto no caso de foco na terceira pessoa omnisciente, o que interessa é que uma cena tem sempre um protagonista, mesmo que esteja longe de ser o protagonista principal. E acredite, é muito raro que algum autor brasileiro, a não ser de forma inconsciente, adote esta aparente restrição, mas que em verdade é um facilitador para o entendimento do leitor. A utilização da terceira pessoa omnisciente pode parecer fácil para o escritor, mas resultará, se inexperiente, numa grande dificuldade de entendimento posterior. As passagens de PDV dentro de uma mesma cena ou são feitas de maneira magistral, ou infernizam a vida do leitor. O melhor mesmo, apesar de suas aparentes limitações (são só aparentes, acredite!) é a utilização da terceira pessoa restrita. Desta forma, para a melhor exposição do que queremos, vamos manter o foco narrativo na terceira pessoa restrita. Neste caso o autor só relata o que o protagonista (como já dissemos, seja ele quem for na estória) da cena vê e pensa.
Repetindo, mesmo que se trate de um personagem secundário funcionando como protagonista, a cena vai ser construida através de seus olhos, uma filmadora conceitual, máquina esta com a capacidade de filmar para fora e para dentro. Em outras palavras, filmar a ação percebida através dos cinco sentidos do protagonista da cena. Nada que acontece à suas costas, por exemplo, pode ser visto pelo personagem. Nada murmurado a uma grande distancia pode ser ouvido, e os únicos pensamentos descritos pelo autor dentro desta cena são aqueles do personagem.
Para solidificar o entendimento do PDV , vamos fazer um exercício:
Pense em uma estória onde o personagem principal seja um ricaço sovina, escravo de sua própria avareza. Ele não desperdiça nem os seus centavos. Assim, ele é o nosso protagonista (o da estória, veja bem). Pense agora numa velha mendiga, que faz o seu ponto em frente ao escritório do granfino. Ela pode aparecer somente em poucas cenas, e ter a função, na estória, meramente de ajudar ao autor a demonstrar o caráter de nosso personagem.
Se contada através dos olhos do ricaço, a cena terá um efeito. Mas contada através da mendiga, a cena poderá ter força muito maior. Quais serão as nossas restrições? Como já dissemos, tudo o que o autor narrar ou descrever terá que estar sendo visto pela mendiga. Nenhum pensamento ou sentimento do ricaço poderá ser contado, a não ser através dos pensamentos ou observações da mendiga.
Vamos à cena:
A velha esparramou uma folha de papelão no canto da calçada, e sentou alí com seus farrapos, enquanto contemplava o outro lado da rua. Um portal de granito emoldurava a entrada de um prédio de muitos andares, donde poucas pessoas entravam ou saiam.
A rua era estreita, e quando viu um bacana com aparência de rico atravessar o portal, disparou um guincho.
– Uma esmola, por favor!
O granfino pareceu ter levado um susto, fechou a cara. Já tinha atravessado para o seu lado, e ela viu que quase passaria ao alcance de seu braço estendido. Guinchou mais forte.
– Uma esmolinha, pelo amor de Deus!
O granfino levantou a mão.
– Droga, mas você é insistente mesmo, hem?
– Mas eu só pedi duas vezes! Por favor, eu tenho que sustentar neto, genro, filhos, nora, e até o vizinho!
Viu que o granfino olhava em volta, e estendeu a mão mais convicta ainda.
“Aposto que ele está com medo de que o vejam me negando!”
Com um suspiro, o coroa bem vestido tirou um saquinho do bolso e começou a futucar lá dentro. Ao final, sacou uma moeda.
– Toma!
A velha olhou incrédula para a moeda em sua mão.
– Dez centavos! Você me deu só dez centavos!
Virou a cabeça ainda a tempo de ver o granfino sair de fininho. Olhou de novo para a moeda e o insólito da situação a fez tornar-se irônica.
“Coitado do granfino! Desse jeito, vai ver que come pior do que eu…”
Com raiva, pensou por instantes em jogar a moeda fora. Coçou a cabeça, e terminou por enfiá-la no bolso da saia imunda.
De novo o guincho voltou a ecoar pela rua.
– Uma esmolinha por favor!(*)
Deu para você reparar que tudo na cena aconteceu sob o ponto de vista da mendiga? Mesmo quando relatamos os sentimentos do granfino, fizemos através da percepção da protagonista da cena. A outra característica de importância pode ser vista no final da cena, quando a “câmera” que usamos se volta para o interior da mendiga e relata os seus pensamentos.
Agora, vamos reescrever a cena, sob o PDV do granfino:
Passou pela portaria ainda tomado pelos resultados da reunião. Com certeza jamais iria ceder um tostão em sua comissão, mesmo que isso resultasse em perda do negócio. “É uma queda de braço – pensou – e eu não vou ceder droga nenhuma para esses sacanas”. A possibilidade de deixar de ganhar aquele dinheiro, por pouco que representasse em relação a sua fortuna, fazia a sua úlcera doer infernalmente. Tomado por sua irritação, atravessou a rua estreita.
– Uma esmola por favor!
Levou um susto com a voz guinchada. Era uma velha mendiga sentada na outra calçada, mas agora já à sua frente. Tentou desviar-se, mas a velha insistiu, guinchando mais alto.
– Uma esmolinha, pelo amor de Deus!
“Porra, já não basta os meus problemas e vem este traste me encher o saco?” Furioso, levantou a mão.
– Droga, mas você é insistente mesmo, hem?
A velha protestou.
– Mas eu só pedi duas vezes! Por favor, eu tenho que sustentar neto, genro, filhos, nora e até vizinho!
O granfino, preocupado com o escarcéu que a velha estava fazendo, olhou em volta. “Se alguém me ver discutindo com esta maltrapilha, estou ferrado! Acho melhor me livrar logo desse constrangimento! – tirou um saquinho do bolso e procurou por uma moeda. – Droga, cadê ela?” Mas, futucando a bolsa conseguiu encontrar a que queria.
– Toma! E sorriu para a velha.
“Espero que todo mundo tenha visto este meu gesto de despreendimento!”
Mas a cara da velha não estava do jeito que ele esperava.
– Dez centavos! Você só me deu dez centavos!
Por meio segundo o granfino ficou indeciso. “Mais uma moedinha e ela fica satisfeita, será?” Mas imediatamente voltou à razão.
“Porra de velha ingrata! O que é que ela queria? Se dou mais, sei lá, vai que me falta?”
Virou-se e se mandou rapidinho, enquanto de novo se torturava com seus problemas. Às suas costas, a cantilena retornou.
– Uma esmolinha, por favor!(*)
Foi possível descrever a mesma cena, a cada vez pelos olhos de um dos personagens. Na escrita de ficção, o autor terá diversas vezes este dilema pela frente. Através dos olhos de quem atinjo melhor os meus objetivos? Em nosso caso será que fica melhor a cena pelos olhos do granfino ou da mendiga?
(*) Estas são cenas alternativas para um conto em construção, com o título provisório de “Financistas”
Fonte: Escrita Criativa - Os segredos do escritor - http://migre.me/68vD2