Ainda escovava os dentes olhando-se no
espelho, repassando todos os acontecimentos do dia. As perguntas vinham como um
vendaval em sua memória... Como ela a conhecia tão bem? Como pode se apaixonar?
O Livro... Porque o interesse no livro?
Os olhos de Amanda arreagalaram-se.
Comprara aquele livro em um Sebo no centro da Cidade. Lembrava bem do dia em
que o encontrou perdido na prateleira empoeirada, no canto escuro da loja.
Quando foi ao caixa...
—
Esse livro é uma raridade. É um dos mais antigos da loja.
Amanda
ignorou o senhor atrás do balcão. A cabeça andava apressada com a competição
pelo novo cargo da empresa.
—Quanto
é?
O
vendedor permaneceu em silêncio.
—
Esse livro está na família há anos. Acho que meu tataravô o guardava em sua
própria biblioteca. Ele sempre disse que era especial porque dentro tem uma
foto de um casal e se alguém, algum dia comprasse, seria abençoado com o amor
vivido por eles.
Amanda
correu para o quarto. A foto! Não podia ser. Começou a tirar as coisas de
dentro da gaveta da cabeceira. As mãos tremiam. Com a adrenalina percorrendo
suas veias, jogou tudo no chão... até ver a foto. Lá estava ele... Era Eduardo
sorrindo. Era ele na foto. Uma foto amarelada pelo tempo. Se recordava bem que
se apaixonara pelo sorrido do rapaz que um dia fora dono daquele livro.
Soltou
um grito com o soar da campainha. Ainda tremia ao se aproximar da porta e
quando viu o rapaz pelo olhos mágico, suas pernas bambearam.
—
Quem é você? — disse com a voz trêmula, através da porta fechada.
—
Amanda, por favor... Deixa eu me explicar. Abre a porta.
—
Não! Quem é você?
—
Eu sou exatamente quem você pensa que eu sou... só preciso explicar. Confia em
mim... O que eu posso adiantar e que sei muito da sua vida, que me apaixonei
por você e que eu realmente acredito que tem talento para assumir a empresa...
A
porta abriu-se devagar. O rosto de Eduardo perdeu a cor quando viu a foto nas
mãos de Amanda. Com os olhos marejados, entrou devagar e sentou-se no sofá,
colocando a cabeça entre as mãos. Respirou fundo.
—
Vou tentar do começo. Pode parecer loucura, mas você tem que acreditar em mim.
Amanda
sentou-se ao lado do rapaz.
—
Minha família carrega uma herança... Não podemos tirar fotos. Nossas almas
ficam aprisionadas no papel. Ninguém em minha linhagem sanguínea pôde perpetuar
momentos, guardar recordações. Nunca, nem uma foto sequer, Amanda. Essa foto,
que estava dentro desse livro, foi um erro. Barbara foi uma mulher especial
para mim. Foi um sentimento genuíno, grande... Mas ela, com a sua maneira
egoísta de amar, mesmo sabendo da minha incapacidade, tirou a foto. Não
acreditei que ela fosse capaz de me aprisionar dessa maneira. Ela alegou que
não podia viver sem mim, que precisava de uma recordação, mas naquele momento ela
me perdeu. Eu não queria aquele amor medíocre, possessivo... — levantou o rosto
e olhou para Amanda. — Eu a vi morrer, eu vi todas as pessoas da minha família
virarem pó, gerações se despediram de mim. Não queira saber há quantos anos
vejo minha vida passar na esperança de um dia achar quem comprou aquele maldito
livro!
Amanda
estava absorta pelas palavras do rapaz.
—
Venho vivendo como qualquer outra pessoa. Montei minha empresa, fingindo
passa-la de geração para geração... Sempre eu no comando. Meu Deus, como que
queria sumir, desaparecer. — esfregou os
olhos. — Então... depois de gastar muito dinheiro descobriram onde estava o
livro. O vendedor, um senhor me contou sobre a mulher que comprara o livro. —
Eduardo olhou para Amanda. — Lá estava seu nome.
Amanda
enxugava as lágrimas enquanto mantinha o rosto baixo. Apesar da loucura, estava
apaixonada.
—
Eu te segui desde então... Por onde você andava, o que você fazia, como você
fazia... O que te motivava, o que te encantava. E no fim... eu me apaixonei....
perdidamente.
Amanda
olhou para Eduardo. Enxugou o rosto e segurou-lhe as mãos. Ele a puxou com
força e beijou-a de maneira urgente e possessiva. O amor entre eles era
visceral, atemporal. A dor daquele beijo era físico. Ele a afastou.
—
Amanda... Eu sei que o que vou pedir não faz o menor sentido, mas guarda essa
foto. Eu não quero me separar de você. Eu não suportaria viver sem você. Por
favor...
—
Mas, Eduardo, e o que será de nós? Você me verá envelhecer, morrer... e depois?
— gritava Amanda, inconformada com a situação.
Ele
caminhava de um lado para outro da sala na tentativa de raciocinar de maneira
lógica.
—
Amanda, nós podemos ter um filho. Um filho nosso! Eu posso cuidar dele, vê-lo crescer!
Uma vida que eu sempre quis!
—
E depois? Ele também vai envelhecer! — Segurou Eduardo pelo rosto. — Por
favor... entenda que o que vou fazer é porque amo você demais.
Eduardo
enxugava as lágrimas, enquanto confirmava com o rosto.
Amanda
tentava acalmá-lo, passando as mãos em seu rosto vermelho. Beijava-lhe os
olhos, o rosto, a boca. Queria sentir um pouco mais do homem que parecia ser
parte de seu corpo.
—
Eu não consigo! — murmurou enquanto se dirigia para a porta.
Abraçaram-se
por longos minutos. Beijaram-se, riram, choraram juntos.
Amanda
pegou-o pelas mãos e despediu-se. A última imagem foi o rosto do homem que tanto
amava, coberto de lagrimas, desaparecer atrás da porta.
Amanda jogou-se no chão e contorceu-se. Podia
deixar as coisas como estavam. Iria viver a vida inteira com o homem que amava,
ter filhos, netos... Mas era egoísmo ver Eduardo perpetuar a dor de ver todos
os que mais amava, morrerem. Olhou pela janela o carro sumir na esquina. Andou
até o quarto, pegou a foto do sorriso que mais a encantara em toda sua vida e
rasgou devagar, como se rasgasse parte de seu corpo, que agora estava em
pedaços.
+++
—
Senhores... Bom dia. Como sabem, desde que o Sr. Eduardo Freire deixou nossa
empresa temos trabalhado com o Vice-Presidente da Soft Business. Tem sido dias
difíceis, trabalhosos, mas emocionantes.
Amanda
olhava para baixo. Não escutava direito as palavras do Presidente. Segurava em
suas mãos o pen drive com o projeto de trânsito. Apesar do rosto inchado e das
noites mal dormidas, estava de pé e lúcida.
—
Mas, apesar de todo o stress, anuncio que o projeto foi concluído. Amanda fez
alguns ajustes e, com a aprovação de todos, ganhamos a concorrência. A Faces
agora passa a ser a segunda maior prestadora de serviços publicitários para o
Governo Federal e eu gostaria de pedir uma salva de palmas para a nossa nova
Diretora de Marketing da Faces Marketing e Comunicação.
Amanda
levantou-se. Um soar de palmas efusivo preencheu a sala. Acenou modestamente
para todos enquanto apertava o pen drive nas mãos. Deveria estar feliz, mas a
saudade era algo que ainda norteava seus dias cinzentos.
+++
Quando
se dirigia para o elevador, o Vice-Presidente da Soft Business aproximou-se.
—
Amanda Castro? Por favor, desculpe-me incomodá-la, mas o Sr. Feire pediu que se
um dia a senhorita chegasse ao cargo de diretora, que eu deveria entregar-lhe
esse envelope.
O
coração de Amanda quase pulava fora do peito só de ouvir falar no nome de
Eduardo. Ela agradeceu, e assim que entrou no carro, respirou fundo e abriu o
envelope.
“
Amanda, amor da minha vida... de todas elas,
Não
saberia dizer onde estou, o que aconteceu comigo, o que foi feito de mim. Posso
garantir que minha vida, em todos esses anos, se resumiu ao pequeno espaço de
tempo que vivi com você. Estou feliz. Conheci o que é o amor, em sua
grandiosidade. Aquele amor cantado, idealizado, poetizado... Isso não foi, não
morre, não desaparece. Mas conheço a finitude da memória e tenho quase certeza
de que daqui alguns anos, vou ser apenas uma lembrança, uma imagem desbotada.
Também não vou ser egoísta. Você é uma mulher linda, jovem e ainda terá filhos,
netos e histórias eternizadas em fotografias. Talvez você ame alguém como eu te
amei, mas mesmo assim, deixo uma lembrança de uma pessoa que levou parte de
você em um beijo que não se perde nem na eternidade.
PS:
Eu sabia que a diretoria seria sua.
Com
todo o amor do mundo.
Eduardo
Vasconcelos Freire”
Amanda
enxugou as lágrimas e quase desfaleceu ao ver na outra página da carta, o
desenho de Eduardo. Como não podia ser fotografado, pediu que algum artista o
desenhasse. O sorriso estava lá, tal qual como ela se encantara. Apertou o
papel contra o peito e soluçou até achar que não tinha mais forças. Respirou
fundo e ligou o carro. Tinha uma longa noite pela frente. Amanhã seria o
primeiro dia como Diretora da Faces.
FIM
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